“Eu estou aqui para confundir e não para explicar”. Chacrinha era genial, mas a cena está mais para Porta dos Fundos. Foi num fim de tarde com vista para a Lagoa da Barra, no lançamento de um prestigiado guia de vinhos, que estendi a taça para um chileno “naranjo”, conforme anunciava o rótulo no estande da importadora conceituada. Sorridente e jovem, na linha contratada para seduzir, a atendente se adiantou: “Esse vinho é diferente, ele é feito com cascas de laranja”. Inspira. Expira. Precisamos conversar.
O insólito fato ocorreu em 2024, mais ou menos uma década depois que o termo “vinho laranja” foi pronunciado nas europas após o renascimento de uma técnica de vinificação datada de milênios. No Rio, porém, a cena curiosa veio alguns meses antes da chegada de certos bares de caminhos arejados e rejuvenescidos, onde os tais laranjas tiram onda com seções próprias nas cartas e vaga nas listas dos mais bebidos.
Paixão e confusão, eis a questão. O cenário me autoriza a arriscar dois goles de prosa, e tirar do balde de gelo um velho clichê: o verão carioca de 2025, agora sim, de fato e de direito, é dos vinhos laranjas. E, pasmem, eles são feitos apenas de uvas.
O meu é com a casca, por favor
O vinho laranja é um vinho de uvas brancas fermentadas junto com as cascas. Ponto. Do mesmo jeito que são feitos os tintos. A maceração de casca e suco pode durar dias ou meses, dependendo da proposta. O resultado são brancos mais encorpados, intensos e complexos, com novo espectro de aromas e cores. Lembram dos taninos, aqueles caras adstringentes e valiosos na estrutura e conservação dos tintos? Eles moram também nos laranjas. A conversa na boca é outra.
Podemos viajar nas sensações: frutas cítricas e suas cascas, mel, gengibre, frutas secas, ervas e especiarias a rodo. Vibração e acidez. Alguns são mais frutados, florais e comportados. Outro desafiam com toques de oxidação, levando nariz e boca à playlist de Lou Reed, não sei se me faço entender, honey, take a walk on the wild side.
Uau. Então esses vinhos são todos cor de laranja, que nem o uniforme da seleção holandesa? Nem sempre. O termo, a rigor, não define uma cor de vinho, mas um jeito de fazê-lo. Falamos de tonalidades, uma paleta que sobe de amarelos intensos para o alaranjado e o âmbar. Chama-se ‘Amber Revolution‘ o excelente livro do inglês Simon J Woolf, um dos mais importantes escritos sobre vinho neste século.

O herói das ânforas
A história recente começa em meados dos anos 1990, na região italiana de Friul-Veneza Júlia, na fronteira com a Eslovênia, onde vive o cidadão Josko Gravner, um vitivinicultor italiano de sangue sloveno que foi de louco a gênio quando resolveu nadar na contramão e fazer vinhos como seus antepassados. Na Geórgia, o berço de tais caldos feitos em ânforas de terracota, enterradas no solo, há coisa de 5 mil anos, ele arrematou os recipientes gigantescos e fez o mesmo nas terras de sua família. Plantou ribolla gialla, uva ancestral do território, e fez um vinho que fica seis meses no barro, com cachos inteiros embaixo da terra, sem qualquer perturbação ou controle de temperatura. Garrafas hoje cultuadas como pedras preciosas. A saga laranja começou ali, o método e a filosofia se propagaram e há mais de 40 países na produção.

Esse é para casar
O laranja é um senhor partido na ideia de harmonizar. Diferentes portas de sabor, nuances e intensidades vivem abertas para um vinho que reúne poderes de brancos e tintos. Refrescante e complexo, leve e estruturado. Paradoxos do requinte. As desafiadoras cozinhas indiana, tailandesa e asiáticas em geral, de pimentas, especiarias e agridoces, beijam-lhe os pés. Charcutaria, queijos, ostras e frutos do mar também. Quem sabe sobremesas menos doces, à base de frutas?
Às mesas. Sugiro uma brincadeira boa no bar Tão Longe, Tão Perto, em Botafogo, que trabalha com brasileiros nas torneiras. Lá, o vinho da gaúcha Dom Dyonisius aparece nas versões branco e laranja, feito de duas formas com a uva lorena. Podemos beber os dois e perceber a diferença (R$ 25 a taça). Combine com as ostras defumadas em conserva do projeto A.mar e ame à vontade.
No Libô, do mesmo bairro, parceria de Roberta Ciasca, a chef, e Maíra Freire, a sommelière, solicite o Soler Tres Naranjo, um argentino de Mendoza da uva moscatel amarillo, com 20 dias de maceração e cinco meses de amadurecimento, disponível em taça. Fica lindo com o escabeche de peixe branco, ou a seleção de queijos brasileiros. É só golaço, com trocadilho.
Também adoro o Belisco, dobradinha da chef Monique Gabiatti e a sommelière Gabi Teixeira. Vou nas lulinhas de Arraial grelhadas com azeite de alho assado e gremolata, de mãos dadas com o uruguaio Elefante El Pisador 2022, da uva traminer aromático, de apenas uma semana em contato com as cascas. Um negócio esse casamento.
Para deixar o mar, vamos na tortilla de porco e sour cream, picles de cebola roxa e coentro do Virtuoso, em Ipanema. Laranja é o que não falta por lá. Chame o Lazy Winemaker Orange, um sauvignon blanc chileno fermentado com as cascas por 60 dias. Depois me conte.

PS. Para quem ficou interessado na ideia estranha do vinho feito com laranja, sugiro a mimosa: suco da fruta e espumante na taça, meio a meio, bem gelados. Mexa e enfeite com a casca.