Em homenagem ao dia da mulher, 8 de março, publico hoje um texto de um de meus livros mais premiados, o “Vinho & Algo Mais”
“O que é uma mulher? Eu não sei. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana” Virginia Wolf.
Certa vez, ao demonstrar minha admiração pelo inato talento de algumas mulheres para a degustação, ouvi a seguinte pérola de um colega de taça: “Como é notório, elas têm facilidade no reconhecimento de aromas no vinho por receberem flores e por seu lugar na cozinha, junto a ervas e temperos vários.” O contraponto veio de uma leitora que se disse interessada por vinhos, “mesmo este sendo assunto de homens”. Ambos os comentários são, além de sexistas, ultrapassados.
A presença das mulheres foi constante e fundamental na história do nobre fermentado. Muitas ajudaram a escrevê-la, certamente não por ter ficado na cozinha, mas por ter atuado nos vinhedos, cantinas e escritórios. Nos últimos anos, as mulheres do vinho cresceram em número e em importância. São diversas as personagens que não aparecem como musas inspiradoras, e sim como exemplos de talento e trabalho. Hoje uma legião de saias está presente em todas as áreas desta indústria, são vinhateiras, enólogas, sommeliers em restaurantes, jornalistas especializadas e presidentes de associações.
Mas nem sempre foi assim. Na antiguidade o vinho era formalmente proibido às mulheres. As razões eram muitas. Para os homens, a associação de mulheres com vinho tinha caráter francamente imoral. Primeiramente esta bebida era associada ao sangue e as mulheres, ao beber este sangue estranho, eram consideradas, de certa forma, adúlteras. O vinho também era associado à fertilidade. Uma lenda egípcia conta que a deusa Ísis, ao comer uma uva, engravidou. O fermentado, para alguns povos, também era tido como abortivo, pois um sangue mata o outro.
As mulheres, do ponto de vista masculino, sempre foram consideradas como possuidoras de poderes mágicos, portanto não tendo necessidade do encanto do vinho. A embriaguez podia levar ainda a possessão e esta possessão nelas adquiria um caráter de violação. Logo uma mulher que se embebedasse jamais poderia ser casta outra vez. Ainda se pensava que a embriaguez poderia levar a procriação de bebês deformados e até demoníacos. Na antiga Grécia, mulheres que bebessem eram mal vistas e a embriaguez era tida como um vício eminentemente feminino. Elas eram afamadas como mal bebedoras, freqüentemente retratadas como ébrias nas comédias gregas. Os romanos tinham o costume de beijar a mulher na boca ao chegar em casa, como uma maneira de verificar, através de seu hálito, se haviam bebido vinho.
Que as mulheres possam dispor livremente de si mesmas, que busquem o prazer, nunca foi vontade dos homens, mas mesmo libações com fins religiosos eram vedadas às mulheres. Leis chegavam a permitir que elas fossem condenadas a morte ou ao divórcio caso bebessem. O último registro de divórcio por esse motivo tem data de 194 a.C.
Somente por volta do segundo século depois de cristo a proibição do consumo de vinho por mulheres caiu em desuso. Mas até o século XVI, beber em público era um hábito masculino. Mulheres que bebessem em bares eram freqüentemente vistas como prostitutas.
Talvez o maior marco da inclusão da mulher no mundo do vinho tenha sido o Champagne. É importante notar que até a explosão do Champagne no século XIX, o consumo de vinho era dirigido aos homens. O espumante de Epernay foi o primeiro a dirigir seu marketing para o público feminino. Muitos rótulos exibiam mulheres. Laurent-Perrier chegou a fazer publicidade apresentando seus clientes mais notáveis, entre eles algumas mulheres.
Se o perfeccionismo de Dom Pérignon (1638-1715) fez do nobre espumante o vinho dos príncipes, presente nos palácios de toda a Europa, coube à perseverança de Nicole-Barbe Clicquot-Ponsardin (1778-1867), mais conhecida como “viúva Clicquot”, convertê-la na bebida das celebrações realizadas no mundo inteiro. Em todas às cápsulas das garrafas de champanhe Veuve Clicquot se vê estampada uma reprodução das faces da senhora de semblante amável em roupas típicas do século XIX.
Assim como a madame Clicquot, outra viúva, Louise Pommery, assumiu os negócios depois da morte do marido, em 1858. A Veuve Pommery promoveu grandemente a exportação de seus vinhos e supervisionou a produção do primeiro champagne brut, em 1874.
Talento e sensibilidade foram as marcas de outra grande dama do champanhe, a vinhateira Lily Bollinger (1899-1977), que além de produzir um dos melhores exemplares do célebre espumante, foi talvez o sua maior promotora pelo mundo, conseguindo captar seu espírito neste raciocínio lapidar: “Bebo champanhe quando estou alegre e quando estou triste. Às vezes, bebo champanhe quando estou só. Quando estou acompanhada, considero-a obrigatória. Eu a beberico se não estou com fome e a bebo se estou. Caso contrário, eu nunca toco em champanhe. A não ser que esteja com sede.” O Vinho do Porto também deve muito a uma mulher, dona Antonia Ferreira (1811-1896), que ficou viúva aos 33 anos e assumiu os negócios do marido. A “Ferreirinha” é, sem sombra de dúvida, a maior personalidade na história deste vinho. Construiu um legado inestimável, recebendo o justo apelido de “rainha do Douro”. Criou novas instalações de produção, abriu e construiu estradas em áreas praticamente desertas. Ao mesmo tempo, desenvolveu trabalho de assistência social e financiou a construção de hospitais e escolas, numa tal dimensão que a sua memória ainda hoje é venerada. Tal talento, não só para lidar com o vinho – da produção à comercialização – mas em proporcionar um avanço nas condições sociais de seu país, faz de Antonia Ferreira uma mulher arrojada que conseguiu superou os limites impostos para uma viúva na machista sociedade portuguesa do século retrasado. O Brasil também teve sua grande dama do vinho, Isolda Holmer Paes. A altiva senhora gaúcha falecida aos 89 anos, em janeiro de 2002, fez do vinho a sua vida. Numa trajetória singular, a educadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi pioneira na difusão da bebida entre mulheres, chegando a fundar e participar de confrarias. Tal foi seu brilho na área que ocupou a presidência da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho (SBAV), no Rio Grande do Sul. Conhecida, respeitada e admirada não só no Brasil, mas também em vários países produtores, onde integrou diversas sociedades enológicas e recebeu inúmeros troféus e títulos. As mulheres também já chegaram aos restaurantes. Nos EUA, cerca de 20% dos sommeliers detentores do título máximo da profissão, o “Master Sommelier”, são mulheres. No Brasil, algumas também já se destacam. Podemos citar em São Paulo Alexandra Corvo, no D.O.M., e Alice Magot, no Esplanada Grill. No Rio de Janeiro, o guia de restaurantes de Danusia Bárbara, a respeitada publicação do gênero, concedeu o título de Sommelier do Ano em 2001 a Deise Novakoski, do restaurante Mistura Fina. Deise, de 38 anos, foi uma das pioneiras da profissão, tendo sido uma das primeiríssimas associadas da ABS (Associação Brasileira de Sommeliers), com a inscrição número 13. Sem dúvida, uma dos maiores especialistas no assunto hoje é a inglesa Jancis Robinson. Autora de diversos livros, entre eles “The Oxford Companion to Wine”, ela tem o cobiçado título de “Master of Wine”. Mrs. Robinson, que tive o prazer de conhecer em sua primeira visita ao Brasil em 2003, é nome obrigatório em qualquer lista dos maiores wine writers de todos os tempos. Virou uma referência mundial. Os Borgonhas Bâtar-Montrachet e Puligny-Montrachet da Domaine Leflaive, considerados hoje dois dos maiores brancos do mundo, são obra de uma francesa, considerada excêntrica por seus pares vinhateiros. Anne-Claude Leflaive inovou começando, em 1990, a usar princípios de biodinâmica em seus vinhedos. Os resultados foram fantásticos e ela hoje produz os melhores vinhos da história de sua propriedade centenária, fundada em 1717. Também da Borgonha é madame Lalou Bize-Leroy. Ela foi eleita em 1998 pela publicação “The Wine Advocate”, editada pelo poderoso crítico Robert Parker, uma das mais influentes personalidades do mundo do vinho nos últimos 20 anos. Madame Lalou, além de produzir seus vinhos na Domaine Leroy, foi coproprietária, até o início dos anos 90, do mais caro e raro vinho do mundo, o Domaine de la Romanée-Conti. Outro vinho mítico, o Château Mouton Rothschild, de Bordeaux, é dirigido por uma mulher. Desde a morte de seu pai, o lendário Barão Philippe de Rothschild, em 1988, a Baronesa Philippine está à frente dos negócios da família. Ela, que, ao contrário de sua mãe, conseguiu escapar da Gestapo durante a II Guerra Mundial, vem modernizando e desenvolvendo suas propriedades em Bordeaux, além de realizar inúmeras joint ventures mundo afora. Recebeu até as honrarias de Chevalier de la Légion d’Honneur e de Commandeur des Arts et Lettres. Enquanto algumas mulheres inovam, outras seguem tradições seculares, como as três filhas do marquês Piero Antinori, um dos maiores nomes da viticultura italiana da atualidade. Dentro de uma tradição de 26 gerações, os Antinori produzem, entre outros, os lendários vinhos “Tignanelo” e “Solaia”. Como tinha somente filhas, Antinori chegou a vender parte de seus negócios vinícolas, mas os recomprou imediatamente ao perceber que as herdeiras tinham tino para o assunto. A filha mais velha, Albiera, 37 anos, dirige uma das vinícolas, enquanto a do meio, Allegra, 32 anos, comanda os três restaurantes da família em Florença, Zurique e Viena. A caçula Alessia, de 28 anos, que se graduou em enologia na Universidade de Milão em 1998, mostra que as mulheres também podem se destacar em funções técnicas. Ela é responsável pelo desenvolvimento de alguns dos projetos do clã, como novos espumantes e o azeite Novizio, um extra virgem de altíssima qualidade. As filhas de Antinori não causam espanto na Itália. Nesta península, a presença de mulheres no vinho é tão marcante que elas já se organizaram e fundaram uma associação, a “Le Donne del Vino”, formada por vinhateiras de todo o país. A presidenta é Giuseppina Viglierchio, a top manager da importante vinícola Castello Banfi, de Montalcino, na Toscana. Os exemplos de mulheres profissionais que alcançaram destaque nesta indústria são infindáveis e vem de toda a parte do mundo. Uma das maiores enólogas do Chile é Cecília Torres, criadora do Santa Rita Casa Real, um dos grandes tintos daquele país. Na Argentina, Susana Balbo é uma referência em enologia.
Mas a mulher mais importante para o mundo do vinho hoje é a consumidora. Uma pesquisa apresentada em 2001 na França aponta como grande tendência deste mercado o consumo feminino, que já representa cerca de 40% do total. Esta é a bebida alcoólica mais popular entre as mulheres nos EUA e Europa. Elas são práticas e compram simplesmente os vinhos de que gostam – já foi o tempo do “branco docinho”. Os preferidos são os tintos secos não muito alcoólicos. No Brasil já compõem a maioria em boa parte dos cursos de vinho e degustações dirigidas. São compradoras pragmáticas, sensíveis e que já entendem bastante do assunto.
As mulheres, que, como lembrou Virginia Wolf, “desde a antiguidade até o tempo presente, geraram toda a população do planeta”, estão provando que o vinho tanto quanto um assunto de homens é um assunto de mulheres.
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