Bebidas elaboradas sem agrotóxicos e intervenções químicas, os vinhos naturais vêm vencendo várias barreiras para conquistar mercado. Exemplo disso é a história de Julia Kemper, empresária de um tradicional clã de produtores na região do Dão, em Portugal. No início do projeto, ela teve que tirar o selo de orgânico e biodinâmico dos rótulos porque as pessoas no país associavam essas palavras a produtos de menor qualidade. Aos poucos, Julia conseguiu reverter a situação em terras lusitanas e, hoje, tanto para o mercado interno quanto para o externo, a vinícola orgulhosamente ostenta o seguinte slogan: “vinhos biológicos do Dão”.
Claro que nem tudo que leva o rótulo de natural merece um brinde. No caso de Julia Kemper, porém, o resultado é digno de aplausos. Para os adeptos de naturais que curtem a acidez volátil predominante nesse tipo de bebida (identificada como aquele cheiro de vinagre), sinto muito desapontá-los. Os vinhos da Julia não os irá agradar porque eles não têm defeitos. Na sua última passagem pelo Brasil, ela apresentou um espumante Nature (sem adição de açúcar) das uvas Malvasia Fina e Encruzado. O grande desafio não foi a vinificação, já que seu enólogo, Nuno Bastos, é da Bairrada, região reconhecida pela qualidade de borbulhas. O difícil foi encontrar um açúcar biológico em Portugal que não fosse mascavo. Depois de muita busca, achou-se a matéria-prima ideal.
O resultado é um espumante produzido pelo método clássico, que faz a segunda fermentação na garrafa, ficando pelo menos 12 meses em contato com as cascas e sem açúcar. E diferentemente de alguns Nature ou Brutos, como se diz por lá, ele é muito delicado e saboroso. Para os amantes das borbulhas pelo mundo, vale conferir. A safra 2022 do Espumante Nature chega em agosto no Brasil e o valor estimado é de R$ 290.

Um dos grandes compradores da Julia Kemper, os países nórdicos, entusiastas dos vinhos naturais, chegaram a ficar ressabiados com a idade dos rótulos (os vinhos de Julia costumam descansar bons anos na adega antes de serem levados ao mercado). Por isso, foram até a quinta para provar os produtos diretamente das pipas. Para eles, foi elaborado um palhete, um tinto levíssimo e jovem, produzidos com uvas tintas e brancas das castas Alfrocheiro, Jaen e Encruzado. O vinho, que não passa por filtragem, faz uma estabilização muito lenta e o resultado de Elpenor Palhete 2023 (R$ 280), que também desembarca no Brasil em agosto, é vibrante, leve e perigosamente fácil de beber. Logo da primeira safra, os nórdicos levaram 3 mil garrafas. No ano seguinte encomendaram 15 mil. “Calma, lá”, disse Júlia. “Eu não tenho uma fábrica em que carrego no botão e lá estão mais 13 mil garrafas”, brincou.
Filha de uma família de 12 irmãos e 40 primos, Julia Kemper vivia na ponte aérea São Paulo-Lisboa onde atuava como advogada em um importante escritório, até que, nos anos 2000, seu pai a convocou a cuidar da quinta da família no Dão. Essa propriedade pertence a eles há 400 anos e nas redondezas há registros de vinificação de povos ancestrais. Muito falante, com seus cabelos rebeldes no rosto à la Janis Joplin, Julia demorou três anos para aceitar o desafio e só aceitou com uma condição: comercializar os vinhos. Não era uma coisa óbvia para o numeroso clã, que costumava consumir toda a produção em grandes festanças familiares com até 1.000 convidados. Lucrar com isso parecia fora de questão. Diante da qualidade dos vinhos, Julia resolveu colocar fim à farra: “Meus queridos, isso cá não é mais só da família, vou vender essas garrafas”.
No novo modelo de negócio, ela fez questão de manter a produção natural, como sempre foi feito pela família e adotou o biodinamismo. Em linhas gerais, a regra é ter as uvas cultivadas sem agrotóxicos, utilizando o calendário lunar para as práticas de manejo e fazendo mínima intervenção durante a vinificação. Outra característica da prática familiar que Julia manteve foi a guarda das garrafas. Depois de prontos, os vinhos descansam por longos anos na cave, assim ganham refinamento e complexidade. “Na minha família, guardava-se garrafas quando nasciam as meninas para que fossem abertas na ocasião do casamento delas. Como somos muitos, estávamos sempre a abrir vinhos mais antigos e eles estavam ainda melhores, portanto eu já tinha convicção que o Dão nos permite essa guarda e nos oferece vinhos muito elegantes”, diz.
A região é descrita por alguns especialistas como a Borgonha portuguesa. Tive a oportunidade de provar um Touriga Nacional 2012, fermentado em lagares (tanques abertos) de granito, feito com pisa a pés e com 12 meses de estágio em madeira, que está quase imperceptível, de tão sutil (o que é uma qualidade). Não me lembro de ter provado um vinho dessa casta com tanta elegância e delicadeza, mas com total personalidade, o que no mundo do vinho chamam de tipicidade. Essa beleza custa R$ 460 e ainda há poucas garrafas dele na Caves Santa Cruz, importadores que trazem os vinhos da Julia ao Brasil. A próxima remessa que chegará ao país será a safra 2013.
Se alguém ainda acha que vinho natural é sinônimo de dor de cabeça, vale a pena conhecer.
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