É verdade que a barreira quase intransponível para a agricultura orgânica é sua realização em larga escala? Para muitos especialistas em agro, esse é um fato tão sólido quanto as Muralhas da China. No mundo dos vinhos, uma empresa chilena derrubou tal paradigma e, como consequência disso, virou uma referência internacional no assunto, amealhando prêmios e clientes em vários países. Em 1998, a vinícola Emiliana, no Chile, fez a transição de uma vinícola de manejo convencional para orgânico. Safra após safra, vem demonstrando que é possível fazer rótulos de alta qualidade e em quantidades capazes de abastecer todos os mercados importantes — tudo isso, acredite, sem uma gota de agrotóxico.
Na receita de sucesso da Emiliana, contam pontos a geografia privilegiada. O Chile tem barreiras naturais como as cordilheiras e um índice de precipitação muito baixo, o que por si só seria responsável por um cultivo sem problemas como fungos e outras pragas, que “obrigam” produtores a usar pesticidas, por exemplo. Mas essa vantagem natural está longe de explicar o fenômeno. É verdade que o país tem um terroir desértico ao norte, mas ao sul chove, além de geadas e ventos desafiadores uivando por todo o território. Dentro dessas condições, como é possível produzir de forma totalmente orgânica 12 milhões de garrafas por ano, como faz a Emiliana?
A resposta é tempo e manejo. “O começo não é fácil, a vinícola perdeu dinheiro na transição. Depois disso, é preciso ainda esperar três anos para conseguir qualquer certificação atestando que a produção é 100% orgânica”, contou à coluna AL VINO Cristian Rodriguez, gerente geral e líder da Emiliana há vinte anos, durante a ProWine, maior feira de vinhos das América que foi realizada em São Paulo no começo deste mês. Segundo ele, a partir de 2015 o negócio engrenou. Desde então, sempre esteve entre as top 10 do Chile.
A HISTÓRIA DA TRANSFORMAÇÃO
O visionário dessa história foi José Guilisasti que, além de proprietário, era o engenheiro agrônomo e vivia incomodado com seus olhos que ardiam durante a lida no campo e com a qualidade da saúde de quem trabalhava na vinícola. Em busca de possíveis saídas para o problema, foi para Alemanha e, em seguida, para Califórnia. Ali, encantou-se com a Frey Vineyards, a primeira americana a tornar-se orgânica e biodinâmica nos anos 1980. Guilisasti voltou de lá disposto a replicar o exemplo no Chile, iniciando a revolução no sistema de produção da Emiliana, que tomou forma definitiva no final da década de 90.
Algumas práticas passaram a transformar a paisagem que normalmente nos remetem a imagem de vinhedos. Uma delas são os corredores biológicos, como são chamadas as linhas de mata nativa preservadas para que se mantenha a biodiversidade de fauna e da flora da região. Hoje, dentro da Emiliana, esses corredores somam cerca de 65 hectares. O solo recebe também atenção especial, com plantação de flores e outras espécies comestíveis. Isso permite que ele se mantenha vivo e fértil.
Quem faz a poda dessas plantas, para que os trabalhadores possam fazer seu trabalho na época da colheita, são as ovelhas dos vizinhos. Elas são convidadas a pastar, recebem alimento rico e nutritivo e deixam de presente adubo que vai ajudar na compostagem das vinhas. Não realmente nenhuma intervenção? Sim, há. São utilizados óleos minerais com cítricos no lugar de herbicidas, sebo de carneiro para atrair formigas e manejo, muito manejo. “As vinhas precisam ter as folhas arrancadas mais vezes para que fiquem mais arejadas e tenham contato com a luz, maneira fácil e eficaz de evitar fungos, por exemplo”, contou Cristian Rodriguez. Faz sentido se preocupar tanto com fungos em meio a um clima desértico? Na verdade, por lá o clima não é tão desértico quanto se pensa. No Sul do Chile, o índice pluviométrico é de cerca 1600 mm por ano. Para se ter uma ideia, no Brasil, a média é de 1.760 mm, por ano.
Outro grande aliado na produção é a área. “Ser orgânico em uma área pequena é realmente mais arriscado”, disse Rodriguez. Por isso, Emiliana tem hoje 1.063 hectares de vinhedos de norte a sul do país e vinícolas em todos esses lugares aptas para a produção de cada família de vinhos. O Vale do Limari, de clima desértico com brisa do Pacífico, é a região perfeita para os cultivos da Chardonnay, Sauvignon Blanc e Pinot Noir. O Vale Colchagua acolhe bem as uvas tintas como Syrah, Carmenere, Cabernet Sauvignon e Merlot, graças à proximidade com os Andes. Vem do Vale do Cachapoal o Syrah de qualidade ímpar, devido ao clima mais de mediterrâneo, que traz maior concentração de polifenóis para a uva. No Vale do Maipo, o paraíso da potente Cabernet Sauvignon, também é feita a vinificação dos brancos da linha de entrada deles, a Adobe. E por fim, mais ao sul, está o Vale do Bío-Bío, região de clima frio, com altos índices de precipitação e geadas que desafiam esse tipo de cultivo e enólogos, mas é onde se produz Sauvignon Blanc, Pinot Noir e Riesling.
Hoje, a Emiliana tem mais de dez certificações de produção orgânica, de países com China, Japão e Inglaterra. Cerca de 95% da produção é exportada e seus principais mercados são Estados Unidos, os países nórdicos e Japão. Em 2005, Rodríguez foi chamado para negociar com o governo da Suécia, que queria chegar a pelo menos 10% dos vinhos orgânicos nas gôndolas (na época, eles não passavam de 1%). Desafio aceito, meta atingida. Hoje, o público nos países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia tem à disposição 25% de vinhos orgânicos para escolher em seus pontos de venda. “Não somos mais a maior parte dos vinhos orgânicos vendidos por lá, já fomos. Atualmente, concorremos com toda Europa”, contou o gerente geral da Emiliana.
A vinícola tem também um vinho natural, o Salvaje, um blend de Syrah e Rousanne, feito com leveduras indígenas e sem adição de sulfitos. Para Rodríguez, esse termo tem confundido muita gente, afinal é possível fazer vinho natural de uvas tratadas com pesticidas. Com assim? Nesse caso, o vinho poderia continuar a ser chamado de natural? “Natural remete a algo sem aditivos químicos, acho importante que as pessoas se atentem para isso”, explicou ele.
O próprio executivo confirmou que, na taça, depois de todo talento da enologia, é pouco provável que você distingua um bom vinho orgânico de um bom convencional, mas certamente ao longo dos anos sua saúde perceberá a diferença. Quem já reparou nos vinhos Emiliana foi a crítica inglesa Jancis Robinson, que chamou a atenção para qualidade do Coyan, seis meses após o lançamento da primeira safra. Hoje o blend de Syrah e Carmenere, que pode ter Petit Verdot, Cabernet Sauvignon e Malbec a depender da safra, completa vinte colheitas com um rótulo especial, negro. O Coyan 2020, disponível hoje no Brasil, recebeu 92 pontos do americano Robert Parker e 94 de James Sukling e custa R$ 336. Os vinhos de entrada estão na casa de R$ 80.
Em tempo: Emiliana Subercaseaux Vicuña foi a senhora que herdou muitas terras no Vale do Maipo. Ela casou-se com um senhor chamado Don Melchor que, em 1883, trouxe de Bordeaux as primeiras videiras de Cabernet Sauvignon para cultivá-las na região de Pirque, localizada a cerca de 50 km de Santiago. Por lá que ele construiu a casa de veraneio da família e iniciou uma vinícola chamada Concha Y Toro. Nascida de uma casta familiar tão nobre, a vinícola Emiliana de hoje mantém o respeito ao legado da história do vinho no Chile, mas em seu manifesto deixa claro que a agricultura orgânica e biodinâmica não é apenas a melhor maneira de produzir vinhos, mas é também um modo de vida que respeito o meio-ambiente e quem nele vive.
Não há como discordar dessa filosofia, convenhamos. Em tempos de tantos desafios humanos e climáticos, brindar com uma taça de orgânico não envolve apenas cuidar de si, mas acreditar num futuro melhor.
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