Londres é um esculacho.
Tem muito de tudo, sempre lotado e na sua cara.
Não saberia resumir melhor a sensação de estar numa capital de um país que, a despeito das dificuldades recentes (inflação, a vida pós-Covid, safra de alimentos fraca ou custo de energia alto por conta da guerra), tem um cenário gastronômico infinitamente mais pujante que o nosso.
Londres, uma das maiores constelações de estrelas Michelin da atualidade, assim como uma das mais premiadas no guia dos 50 Melhores restaurantes do Mundo (50Best), sempre foi grande lançadora de tendências em toda a Europa e no Brasil, apesar de nossas diferenças.
Singapura, por sua vez, é um hub da Ásia. É país/cidade/ilha riquíssimo, com muitos estrangeiros de passagem, morando e trabalhando ali por 2 ou 3 anos. Graças ao tamanho diminuto e pouca área de produção, tem como hobby colecionar os melhores ingredientes dos países vizinhos, sejam vieiras australianas ou atuns japoneses.
Por essas características, a cozinha de Singapura virou um bom resumo da alta gastronomia mundial: é um Oriente suficientemente ocidental, ou vice-versa, com cardápios que funcionam para gente de qualquer canto do planeta.
Na última Primavera do Hemisfério Norte, passei por Londres e Singapura e, por motivos de “dane-se, vou chutar o balde no meu período sabático”, juntei ao céu do meu estômago 12 estrelas Michelin em Londres, 11 em Singapura, sendo que 4 dos restaurantes visitados também estavam no guia dos 50 melhores do mundo.
Só posso dizer que na alta gastronomia, assim como acontece na alta-costura, um hemisfério olha para o outro antes de lançar seu cardápio sazonal.
O que eu vi? Conto aqui.
NO SALÃO
Já não é novidade que ganhadores de prêmios não precisam mais de pompa ou circunstância. Mesas (cada vez mais) coladas, sem toalhas e pequenos pratos para dividir ainda são a fórmula de alguns dos mais premiados nas duas cidades.
As chef’s table continuam em alta, mas os cozinheiros arrumaram um jeito de se aproximar de todos os clientes, e não só daqueles que conseguiram reservar um dos assentos disputados dos balcões junto à cozinha. A moda, agora, é o chef escolher uma das etapas do menu degustação, sair da cozinha e apresentá-la pessoalmente. Em geral, a escolha é pelo prato que lhes dá mais orgulho ou aquele menos comercial. É uma forma de aumentar a empatia dos clientes pela casa e “vender” criações e conceito com mais propriedade, sem intermediários.
O mesmo acontece com a pâtisserie. Quando a casa tem um confeiteiro encarregado da seção, ele vem pessoalmente até a mesa explicar sua criação. Só sei que funciona.
O dress code se perdeu em algum lugar do passado, como já abordei AQUI. E, é claro que com as temperaturas mais altas na Primavera, os limites entre despojado e desleixado vão se perdendo. A quem interessar possa, expliquei naquela coluna o que equipes e donos de restaurantes julgam inadequado.
COMIDA
Já tinha falado, também, sobre o pão como etapa, AQUI. A tendência se consolida nessa Primavera.
A preocupação com sustentabilidade é uma unanimidade, e por isso, a quantidade de pratos à la carte vem diminuindo e os menus fixos se proliferando (mesmo os pequenos, de apenas 3 ou 4 tempos) para gerar menos desperdício. Dentro do mesmo espírito, aumenta o uso de carnes menos nobres como pescoço de animais ou cabeças de peixe nas preparações, para aproveitamento animal de cabo a rabo.
O “sabor puro das coisas” é outra grande tendência, especialmente em Londres. Agora, os chefs preferem usar elementos naturalmente salgados, como algas, em vez de adicionar sal ao prato. O mesmo acontece com elementos ácidos ou intrinsecamente doces. Chegar a uma composição equilibrada buscando o sabor puro das coisas é o grande desafio.
A sazonalidade dos peixes começa a ter mais destaque no cardápio. “Hoje, especialmente, temos o peixe tal, que só aparece na Primavera” é frase que está na boca das equipes de salão.
Outra ótima novidade é o uso de frutas especialíssimas como rainhas, na sobremesa. Num restaurante 3 estrelas, em Singapura, ameixas de Yamanashi (duas vezes o tamanho de um ovo e muito mais doces) vinham simplesmente com raspas de yuzu: mangas de Miyazaki, que têm poda e colheita controladíssimas, foram servidas só com um toque de pimenta; e o melão de Shizuoka com uma gota de gel de cereja seca e flor de shiso. O importante era terem um processo único e estarem no ponto absolutamente perfeito de maturação. Taí um quesito em que o Brasil pode brilhar e deveria investir nisso fortemente.
E a microsazonalidade como aposta não acontece só com frutas. A guisante lágrima, por exemplo, uma ervilha pequenina e pontuda que só ocorre de 2 a 4 semanas por ano, voou do país Basco até Singapura para ser servida no menu do dia seguinte. A busca de ingredientes únicos que acabam muitíssimo rápido uma novidade interessante.
E, sim, flores continuam sendo um grande apelo de início de Primavera, em cima das sobremesas e pratos.
BEBIDAS
Como sabemos, o consumo de álcool vem diminuindo nos últimos anos, daí a proliferação de menus acompanhados de bebidas não-alcoólicas, pelo Mundo. Para os nem tanto ao mar, nem tanto à terra, surgem menus semi-alcoólicos, com um prato do menu degustação acompanhado de álcool e o seguinte, não. Uma novidade interessante que vi por lá.
Nos vinhos, os naturais e os convencionais convivem em harmonia. A tendência é por menor intervenção, mas ninguém é mais tão radical.
De modo geral, também continua crescendo o interesse por uvas, regiões e conceitos menos convencionais. Num restaurante em Singapura, por exemplo, a carta era toda feita a partir de produtores orientais pelo mundo.
Quanto aos copos de cristal, o design simples e elegantíssimo dos copos japoneses Kimura, anda fazendo mais sucesso do que os da tão cobiçada Zalto, nas mesas da alta gastronomia.
Quanto às demais bebidas, o vermute continua crescendo e a kombucha continua em alta. Agora, feita com ingredientes também no pico da estação.
Cartas de café começam a surgir, com nome dos produtores, detalhes da colheita e cultivo e notas de degustação.
Como nota chatérrima, uma das manias dos estrelados agora é a dança das cadeiras: é um tal de interromper o jantar para levantar e ir até a cozinha para ouvir toooooda uma explicação sobre os ingredientes, ou subir até o segundo piso só para comer a sobremesa, mudar para o balcão para um drink especial ou mudar de salão para tomar o café. Uma chatice afetada e desnecessária no meio da conversa.
Tomara que essa etapa da tal “experiência” não pegue.
Pois é… na Primavera nem tudo são flores.
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