“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.” Neste ano, a França tem tido provas amargas disso. A verdade dessas palavras de Camões vem se abatendo sobre um dos maiores símbolos do país: o vinho. O governo está pagando aos produtores para que destilem vinho — ou seja, extraiam dele o álcool — e joguem o resto fora, livrando-se assim do excedente de produção.
Não é a primeira crise de oferta agrícola da história. E provavelmente não será a última, pois o pragmatismo é a regra nesse campo. Nós, brasileiros, vamos nos lembrar de situação semelhante com o café nos anos 1930, durante a Grande Depressão mundial, quando estoques eram queimados para tentar fazer subir a cotação internacional do nosso principal produto de exportação.
Há outros exemplos. Nos Estados Unidos, no começo do século passado, uma safra avantajada de laranjas deu origem ao suco industrializado. O invento por sua vez estimulou a produção da fruta, levando, em anos recentes, a novos excedentes, que acabaram destruídos. Mais tarde, no final do século, os europeus tiveram de conter a produção leiteira e transformar leite fresco em pó.
Conheço de perto o orgulho que muitos agricultores têm de seu trabalho, e muito me compadeço com os produtores de vinho. Orgulho mais que compreensível, diante do investimento afetivo colocado, dia após dia, em suas fileiras de plantios. Vistas de fora, podem parecer todas iguais, mas não são.
Na França, cultivos antigos, muitas vezes passados de geração para geração, devem mudar de feição. Pois, com o dinheiro extra do governo, os viticultores prometem adotar uma estratégia radical: desenraizar parte de suas vinhas.
“Os costumes e as vontades mudam, mas hábitos culturais não morrem tão facilmente”
A preocupação na França não é de hoje. Os problemas vinham se acumulando ao menos nos últimos cinco anos, e não devido ao crescimento da produção (a segunda maior do mundo, depois da italiana). A questão é que o consumo diminuiu. Caíram as importações de grandes compradores, como a China e os Estados Unidos. E caiu também a demanda interna.
E aí entram os costumes. Há setenta anos, um francês bebia 130 litros de vinho ao ano. Agora, são apenas 40. Até fatores em que não costumamos pensar desincentivam o consumo, como o fato de que há muitos lares em que os filhos são criados por apenas um dos pais. O que isso teria a ver com o consumo de vinho? Bem, sem outro adulto por perto, é menos convidativo sacar a rolha de uma garrafa inteira no jantar. Além disso, os novos padrões de consumo dos jovens indicam a preferência cada vez maior pelos drinques.
Aliás, por falar em drinques, as regras para a destilação do vinho francês deixam claro que o álcool obtido desse processo não pode ser destinado a outras bebidas, para não estimular a concorrência. Por ora, ele só pode ser usado em outro produto típico francês: os perfumes.
Apesar das adversidades, no entanto, o vinho francês há de resistir. Os costumes e as vontades podem se modificar, mas, nem que seja por nostalgia, hábitos culturais não morrem tão facilmente. Um copo meio vazio é também um copo meio cheio. O mesmo vale para uma taça — de malbec, merlot, chardonnay, pinot noir, carménère e tantos outros vinhos. Santé!
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858
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