Pelo compasso do sino da igreja se sabia muito sobre o morto. Se o badalar era lento, fraco, quase mudo, o morto chegou ali triste, sozinho e sem filhos. Para os casados, o sinal aumentava em velocidade e intensidade. Quando uma criança morria, a melodia era o ‘repite’, bem mais alegre e festivo para anunciar a subida de um anjinho.
Um defunto rendia bastante assunto no sertão dos anos 30.
Naquele tempo, caixão era coisa de rico. Morria-se, mesmo, na rede. Depois de preparado o corpo na mortalha de tecido fino, vinha terço, crucifixo e uma vela entre as mãos do morto para iluminar seus passos pelas trevas. Então chegavam parentes, velhos, beatos, amigos, as choradeiras, os curiosos e…. os bêbados.
A morte era um momento importante, cerimonioso, daí o contraste do choro tímido da família com a gritaria das choradeiras, que pranteavam os mortos de famílias ricas.
Os oradores bêbados eram os mais emocionados ao elogiar o defunto, mas a pinga era obrigatória (mesmo) àqueles encarregados de carregar o corpo até o cemitério mais próximo, por vezes quilômetros e mais quilômetros distantes daqueles recônditos perdidos.
Outro ritual curioso acontece nos dias de hoje, em Madagascar: a cada 5 ou 7 anos, muitos malgaches encomendam uma banda e removem os corpos da cripta da família. Então, ajeitam os ossinhos para remontar o corpo, borrifam a mortalha com perfume ou vinho e dançam com os mortos.
Acho bonito. Afinal, a famadihana se baseia na crença de que vida e morte não são coisas distintas. Somos parte dos que já foram e os entes queridos podem andar para lá e para cá, sussurrando palavras ao vento ou nos dando recados através dos sonhos.
Na segunda passada, anunciei o fechamento dos meus restaurantes, 24 anos depois do primeiro dia de vida, e essa questão defunta resolveu me fazer companhia.
Descobri que preciso morrer mais vezes.
Nunca fui anjo, mas o badalar dos sinos foi muito animado. Velhos e novos amigos, funcionários, clientes, choradeiras, empresários, jornalistas, beatos, curiosos e tantos outros me mandaram mensagens absolutamente lindas. Tão lindas, que algumas ficaram sem resposta porque as letras se afogaram pelo caminho.
Nem bem bati as botas e já remontaram meus restos, me levaram para dançar, iluminaram meu caminho e sussurrei muitas palavras de sabedoria por aí.
A verdade é que morri há 3 dias, mas passo bem. A todos que me deram carinho, muito, muito obrigada!
Afinal, não cabe tristeza. É hora de beber o morto!
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