Forbes, a mais conceituada revista de negócios e economia do mundo.
A partir da safra de 2025, o Château Lafleur não trará mais as denominações Pomerol nem Bordeaux. Motivada pela inação do sistema AOC (Appellation d’Origine Contrôlée) diante das mudanças climáticas, essa decisão radical da vinícola francesa abala a ordem estabelecida.
Isso porque a decisão questiona profundamente a hierarquia econômica do vinho, a governança das denominações e os próprios fundamentos do modelo bordalês, que na tradução para o português seria o vinho com DOC (Denominação de Origem Controlada).
A região de Pomerol é uma denominação vinícola situada na margem direita do Bordeaux, no departamento da Gironda, dentro da sub-zona Libournais. A decisão é um marco porque a Château Lafleur não é uma propriedade como as outras. Situada no coração do planalto de Pomerol, vizinho de Petrus e Le Pin, ela produz há mais de 150 anos uma das bebidas mais cobiçadas do mundo. Sua saída do sistema das denominações controladas, a partir da safra deste ano, marca uma virada estratégica.
Essa decisão não se explica por um desejo de marketing (ainda que tenha projetado o nome da propriedade na mídia como não ocorria há muito tempo), nem por um capricho iconoclasta, mas por uma necessidade vital: preservar a identidade do vinho diante de transformações climáticas de intensidade inédita.
Os números falam por si. O verão de 2025, estação europeia entre junho e setembro, registrou temperaturas de até 49,7°C sobre os frutos em Pomerol. A primavera, que ocorre de março a junho, apresentou uma redução de 67% nas precipitações, com colheitas antecipadas em mais de vinte dias em relação aos anos 1980.
A isso se somam geadas tardias na primavera, picos de calor extremos e uma fisiologia da videira profundamente desestabilizada. Para a família Guinaudeau, proprietária da vinícola Lafleur, essas condições climáticas tornam ineficazes certas obrigações impostas pela AOC, como a proibição da irrigação precoce, de dispositivos de sombreamento e a densidade mínima de plantio.
Essas práticas, embora validadas cientificamente e amplamente utilizadas em outras regiões vitivinícolas do mundo, continuam proibidas no quadro regulatório de Bordeaux.
No topo da pirâmide qualitativa
A retirada do Lafleur da denominação não representa apenas uma decisão técnica. Ela desorganiza o equilíbrio econômico de um microcosmo vitivinícola ultrasseletivo. Pomerol, com seus 813 hectares de cultivo — ou 0,7% do vinhedo bordalês —, baseia-se em uma hierarquia informal estruturada em torno de três propriedades: Petrus, Le Pin e Château Lafleur. A saída de um desses pilares cria um vazio sem precedentes.
Com uma produção restrita de 12 mil garrafas por ano e preços entre 1 000 e 1 700 euros (entre R$ 5. 950 e R$ 10 mil) por garrafa, conforme a safra, o Lafleur ocupa há muito tempo o topo da pirâmide qualitativa e financeira. Diversas de suas safras receberam nota 100/100 de Robert Parker, e o vinho de 1947 ainda hoje é citado como superior, nesse mesmo ano, ao Petrus e ao Cheval Blanc.
Parker é o fundador da publicação The Wine Advocate, um dos mais respeitados críticos do mundo, ajudando a moldar como os vinhos de qualidade são avaliados e comercializados internacionalmente. Suas notas influenciam investimentos, posicionamento de marcas premium e estratégias de exportação..
Em termos de valorização fundiária, Pomerol também se destaca: o preço médio do hectare atinge 1,3 milhão de euros (R$ 7,74 milhões), o que equivale a 144 vezes o valor de um hectare de Bordeaux tinto genérico.
A perda do Lafleur, que representa cerca de um décimo da produção da denominação, pode causar uma queda estimada em três milhões de euros (R$ 17,88 milhões) por ano nas exportações ligadas a Pomerol. Isso em um contexto em que o setor bordalês já sofre: recuo de 8,4% nas exportações em 2024, queda de 50% no faturamento de alguns negociantes e redução programada de mais de 12% do vinhedo até 2025.
O sistema AOC fragilizado
Essa decisão expõe de forma contundente a crescente incompatibilidade entre o sistema das denominações de origem controlada e a realidade econômica de uma viticultura de altíssima precisão.
A retirada do Lafleur questiona diretamente a relevância do modelo bordalês, baseado na hierarquia das AOC, que sustenta a organização comercial secular da Place de Bordeaux. Se um “Vin de France” pode continuar recebendo as melhores notas, vendendo-se pelos mesmos preços e mantendo uma imagem de prestígio comparável à dos crus classés, toda a estrutura interpretativa do mercado precisa ser revista.
A recente reforma do regulamento da DOC Bordeaux, em vigor desde junho de 2025, tentou oferecer alguns ajustes: redução da altura do espaldeiramento, mudanças na densidade e introdução controlada de novas variedades resistentes, como o marselan e o touriga nacional.
Mas essas modificações, consideradas tímidas, não respondem nem à urgência climática nem às necessidades das propriedades mais vulneráveis. A margem de manobra continua limitada, restrita a experimentações ou a limites simbólicos (5% da área plantada, 10% do corte final).
Rumo a um mercado de grandes vinhos desvinculados da origem?
O que o vinho Lafleur inicia agora é um movimento profundo em direção a um modelo em que a origem administrativa dá lugar à excelência comprovada. O INAO (Institut National de l’Origine et de la Qualité) já não é o único guardião da qualidade.
Esse papel passou a ser dividido, ou até superado, por críticos internacionais, colecionadores, investidores e mercados estrangeiros. Para esses atores, o reconhecimento está menos vinculado a uma denominação do que a uma assinatura estilística, uma constância qualitativa e uma raridade controlada.
Não por acaso, está surgindo a criação de uma nova categoria não institucional: a dos “vinhos de exceção fora da DOC”. Vinhos como o Lafleur podem construir seu próprio referencial de valor, baseado em sua história, em seu nível de exigência e em sua capacidade de se libertar das normas sem perder reputação.
O mercado de investimentos vitivinícolas, estruturado em torno dos sistemas de classificação e das AOC, terá de se adaptar. Porque, se a excelência agora pode se expressar fora do enquadramento tradicional, o preço da terra, as estratégias de compra antecipada (en primeur) e os critérios de aquisição correm o risco de ser redefinidos.
O nascimento de um precedente?
A saída do vinho Château Lafleur da DOC não é uma exceção isolada. É um sinal. Essa propriedade emblemática da margem direita não renuncia ao seu terroir, à sua excelência nem à sua influência. Afirma apenas que o enquadramento regulatório tradicional já não se ajusta às realidades modernas, sejam elas climáticas ou econômicas.
Ao tomar essa direção, o Lafleur redefine as regras do prestígio vitivinícola. Torna-se um caso de estudo, um laboratório estratégico observado por apreciadores, profissionais, investidores e instituições do vinho em todo o mundo. Bordeaux foi avisada: o futuro talvez se desenhe fora de seus marcos históricos.
E o Château Lafleur, ao sair das AOC, pode muito bem ter assinado não uma ruptura, mas o ato de nascimento de um novo modelo vitivinícola — em que a marca, a precisão e a liberdade de ação substituem a tradição como motores de valor.
O post Nunca Mais Chame Esse Vinho DOC de “Pomerol”, Agora Seu Nome É Château Lafleur apareceu primeiro em Forbes Brasil.
-
Cursos

“FALANDO EM VINHOS…..”
R$ 39,90 ou em 10x de R$ 3,99[seja o primeiro a comentar]Comprar Curso -
Cursos

A arte da harmonização
R$ 29,90 ou em 10x de R$ 2,99[seja o primeiro a comentar]Comprar Curso -
Cursos

Curso Mitologia do Vinho
R$ 597,00 ou em 10x de R$ 59,70[seja o primeiro a comentar]Comprar Curso





