
Estivesse vivo, Luís de Camões — que viveu há mais de cinco séculos — seria obrigado a comer cookies num bowl, depois de uma sequência de snacks e, antes de degustar um wrap, seguir num leque de finger foods harmonizados por um welcome drink durante um brunch ou happy hour em algum rooftop por aí. Esse é um triste fim para a língua portuguesa, que vem sendo castigada pelo estrangeirismo, sobretudo na gastronomia, setor da economia cada vez mais em alta, depois que a americanização das palavras invadiu o Brasil pela porta da tecnologia e do ramo executivo: startar, budget, target, brainstorm e por aí vai… Pior seria para Camões, coitado, ser obrigado a engolir a grazing food. Aí não dá: ficaria entalada na garganta do poeta.

Uma das maiores escolhas de figuras da literatura lusófona foi Gregório Duvivier, para embasar seu mais novo espetáculo, “O céu da língua”, em cartaz no lindíssimo Teatro Carlos Gomes na Praça Tiradentes. No monólogo — em que o ator une humor e poesia para celebrar a língua portuguesa —, ele se debruça sobre a presença quase invisível da poesia (e ousaria dizer, também da palavra) no nosso cotidiano, inclusive o fator “vira-latas” do estrangeirismo.


Mas e os chefs cariocas, o que estão achando desse mis en place?
“Snack é foda, bowl eu odeio”, diz Ricardo Lapeyre, eterno defensor da cumbuca. A consultora gastronômica Vera Saboya cita alguns dos termos e expressões que mais lhe causam indigestão: fusion food, bar à vin, muffin, steak… Para Gerardo Ruiz, que, ironicamente, se apresenta como Food & Beverage Manager (gerente de alimentos e bebidas), o pior são open bar, catering, room service e mini wedding.
“Eu tenho um bufê que atende a muitos casamentos, e as noivas adoram quando eu digo que meu cardápio será todo baseado em finger food”, contou-me. “Acho que é uma tendência. A americanização da língua portuguesa chegou à gastronomia pelas redes de hotéis americanas. As expressões foram chegando, ganhando status e pegando gosto pelos clientes.”

Não é bem inglês, mas o Fred Motta, do Meio-dia, chamou “Amuse Bouche” de “Alegra a Boca”, e é genial. Para Álvaro Albuquerque, da Casa da Tatá, o fim da picada é comfort food. “É comida caseira, porra!”

Ao professor Breno Cruz, do Departamento de Gastronomia da UFRJ e criador do Festival Gastronomia Preta, causa verdadeira ojeriza termos como blend (de carne a chocolate), naked cake, pasta (para macarrão – olha que palavra mais linda!), formaggio (para queijo): “Termos que uma simples tradução poderia valorizar a nossa língua mãe, mas são usados de maneira bem corriqueira na gastronomia brasileira e com um objetivo implícito: fortalecer a ideia de distinção social.”

Mas que raios é grazing food? Fui à fonte para perguntar a uma nova chef mineira, Fernanda Nery (@ananaquefaz), que vem fazendo fama com esse conceito, que, segundo ela, surgiu da Austrália.
“Quer dizer comida de pastoreio. Só que, com a Internet, toda essa evolução da gastronomia, esse conceito teve um upgrade, vamos dizer assim, é comida espalhada, farta. A comida pode vir numa tábua, numa mesa, em vários lugares que vão facilitar as pessoas a ter esse acesso, misturando textura, cor, sabor, e ainda vão harmonizar com vários tipos de bebidas, de vinhos a cervejas”.

Sob a égide da informação textual, o professor de Português e doutor em Linguística, Wuilton Paiva, acredita que, se importante, o uso dessas palavras deve ser feito entre aspas. “Senão, ele está ferindo a norma culta, nitidamente, inclusive, cometendo um erro linguístico, um erro na sua estrutura textual. E aí pensa num texto com aspas o tempo todo — eu acho que, só de pensar nisso, a gente já percebe o quanto ele não fica bom.”

O especialista cita Zeca Baleiro e seu “Samba do approach”, uma crítica musical a esse uso indiscriminado do estrangeirismo. ‘Venha provar meu brunch. Saiba que eu tenho approach. Na hora do lunch, eu ando de ferryboat. (Beautiful!)’”
A discussão vai longe; estrangeirismos são considerados vícios de linguagem. “Próximo do que nós chamamos de barbarismo, tem uma função que beira o pedantismo”, alerta Paiva, considerando, entretanto, que, se a principal função da língua é a comunicação, as palavras jeans, abajur e baguete já fazem parte do dia a dia e, aparentemente, está tudo “OK!”.
No consenso do professor, para concluir, há aí uma clara desvalorização do nosso idioma, retomando um pouco do nosso espírito colonizado. “Porque se entende que o nosso português não ‘deixa o evento elegante’, ‘o cardápio apresentável’, não valoriza.
Ou seja, vamos ter que lidar com isso e seguir com menus recheados de snacks e compreender que, num país que ignora o ensino e a educação, alguns podem achar charmoso, chic e até cômico.
“Imagine o quanto é paradoxal um prato tipicamente brasileiro nomeado com estrangeirismo?”, acrescenta Paiva, que deve preferir feijoada a pork and bean stew.

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