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A força histórica da cozinha italiana no Rio de Janeiro

“Por que comemos o que comemos?”, me pergunto todos os dias.

A resposta é uma receita complexa que envolve os nativos e imigrantes, claro, mas também geografia, política, clima, acesso a ingredientes e tecnologia, religião ou modismos, tudo isso muito bem liquidificado em velocidade 3, nesse mundo globalizado.

Nada simples, mas com evidências por toda parte.

Costumamos ignorar a gigantesca influência da cozinha italiana no Rio porque crescemos com a certeza de que a colônia italiana sempre esteve em São Paulo, o que é um fato, maaaaas…. nunca foi só lá. Estamos aqui para provar.

Desde a década de 1820, e bem antes da grande imigração, na passagem para o século XX, já havia colônias em diferentes estados do país.

Nossos italianos do Rio não encontraram nada do que estavam habituados, especialmente o trigo; acabaram plantando feijões e foram muito responsáveis pelo início do cultivo de verduras (não tínhamos o hábito) e do milho. Aliás, o mesmo milho tomou caminhos bem diferentes, nos cardápios. De um lado, virou polenta dos italianos, do outro, o angú dos negros escravizados. Apenas um deles ganharia fama em restaurantes, até o século passado, apesar de terem a mesma definição no dicionário: “farinha de milho escaldada ao fogo”. Felizmente, isso vem mudando.

Do porco do quintal, nada se perdia. A banha era fundamental para conservar qualquer coisa, de feijões a legumes. Da pele, vinha o torresmo. Tanto o presunto quanto o salame eram embutidos nas tripas, pendurados e maturados na despensa, e os embutidos frescos eram comidos na hora ou trocados por outras mercadorias, com os vizinhos.

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E foi do porco a primeira ‘pegada’ italiana em anúncios no Rio de Janeiro, tanto em casas de pasto – as precursoras dos restaurantes – quanto em lojas de comida.

Nas madrugadas de pesquisa, esbarrei num anúncio no longínquo ano de 1813, em que João Barbon, “de nação italiano”, vendia paios, “lingoiça”, “salsicha”, na atual Gonçalves Dias, antiga Rua dos Latoeiros. Ali pertinho, na Rua do Ouvidor, a 5 minutos a pé, um comerciante abria uma casa de “salxixas e salame de toda qualidade, à moda de Italia”. Mais adiante, em novo anúncio, outro “salame de cabeça de porco”, além de “codegini (cotechino) de panela”, “salxixas” e “salame de Italia”, são vendidos a 600 réis.

Quanto mais pesquisava, mais choviam em progressão geométrica, já nos primeiros anos de 1800, anúncios que demonstravam a forte presença da Itália no nosso cotidiano.

Fossem cozinheiros italianos procurando emprego; um comerciante português que vendia “maças (massas) finas de todas as qualidades, da Italia”; uma confeitaria que fabricava “pevide” (como, hoje, chamamos o risone), “estrellinha, lazenha, vermixelle e macarrão”; outra padaria  que “do meio dia até huma hora” fazia “empadas de peixe de maça tenra ao gosto italiano”; ou ainda uma casa de pasto que anunciava “macarrão de primeira qualidade vindo de Nápoles”, assim como “salame de Bolonha” e “azeite doce de italia”, as pegadas estavam por toda a parte.

E mesmo com a ferrugem dizimando trigais no Sul do Brasil e a abundância de um substituto, a mandioca, os cardápios não abandonavam as massas feitas de farinha de trigo, que seguia sendo importada em larga escala.

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Raviolis, Cappelletti, Talharins e bons vinhos, desde 1908
Raviolis, Cappelletti, Talharins e bons vinhos, desde 1908Il Patriotta/Arquivo pessoal

A partir de 1830, identificamos uma “trend” ítalo-carioca: o ravióli. Aliás, eram “rabiolas”, depois “rabioles” e, só em 1899, “raviólis”, e costumavam ser servidos às quintas e domingos.

Em 1836, não só podiam ser encomendados pela rua do Ouvidor, como também passaram a ser servidos em bons hotéis, o que já dava pista do status. No Hotel Pharoux, havia “sopa de ravioli à italiana”; no Hotel de França, um ‘ravioli à italiana de superior qualidade’ batia ponto no menu em todos os dias da Quaresma e no Hotel Rocher de Cancale, havia sopa de rabioli. Vejam que, mesmo as casas de proprietários franceses, não deixavam de anunciar preparações italianas, regularmente.

O talharim era a segunda massa mais presente em jornais, sem prejuízo dos maccheroni, capeletti, tagliatelli, lasagne ou gnocchi. Até o fim da década de 40, a principal estrela italiana na nossa cozinha, além dos embutidos, era mesmo a “pasta”.

Num outro departamento, surge um concorrente bem adequado ao clima carioca: o sorvete. Em 1835, Luiz Bassini, um napolitano, inaugura na atual Rua Primeiro de Março a que o historiador Vivaldo Coaracy diz ser a primeira sorveteria do Brasil, “como nas melhores sorveterias de Nápoles”.

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E, por falar em Nápoles, em setembro de 1843, mais um grande empurrão para a influência italiana no prato: a princesa napolitana Teresa Cristina, noiva de Pedro II, desembarcava na capital.

A pizza napolitana, estilo que ganhou força com a vinda da Imperatriz Teresa Cristina para o Brasil
A pizza napolitana, estilo que ganhou força com a vinda da Imperatriz Teresa Cristina para o BrasilFonte: Revista Careta 1919/Arquivo pessoal

A reboque, chegaram no Rio um enorme número imigrantes vindos, majoritariamente, de Cosenza, Potenza e Salerno e, em número menor, de Nápoles, Caserta e Reggio Calabria.

No séquito da Imperatriz, veio Angelo Fiorito, um dos primeiros fabricantes de macarrão no Rio de Janeiro, e talvez um dos primeiros a fazer a massa nas cores branca, verde e vermelha, que “costumavam provocar cólicas nos clientes”. Com o tempo, adaptou a produção a outras massas “próprias para este paiz”, feitas de tapioca.

Imaginem que, em 1897 já havia 14 fábricas de massas alimentares no Rio.

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Também de Nápoles veio nosso estilo preferido, que começou a fazer sucesso em 1916, com A Pizzeria Napolitana, inaugurada na Rua Espirito Santo e depois transferida para a Rua do Senado, um dos maiores pontos de encontro da cidade.

E a coisa crescia e crescia…

Durante os 23 anos em que foi impresso, o Jornal Il Bersagliére, publicado aqui, mas em italiano e voltado para visitantes e expatriados, fez quase 400 menções a menus com talharins e outras 600, a anúncios de vermute. Junte-se a eles os azeites, licores, conservas de legumes, carnes e peixes, dos queijos, parmigiano, ou mesmo das massas de Gragnano (agora tão badaladas pelos chefs do país), que chegavam à cidade, já em 1906.

Naquele mesmo ano, os italianos já eram 12% dos estrangeiros totais; o segundo maior grupo, depois dos portugueses. Inúmeros virariam “ganhadores” (nome herdado dos “escravos de ganho”, forçados pelos senhores a vender mercadorias na rua), como substitutos da mão-de-obra depois de abolida a escravatura. Vendiam frutas, aves, legumes, peixes, produtos da lavoura ou pães.

Muitos deles trabalhavam pelo Centro, entre depósitos e restaurantes que se concentravam nas atuais Assembleia, Lavradio ou São José.

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Outros tantos viraram personagens da literatura, nas tintas de João do Rio, que já mencionava venezianos e napolitanos, em 1875; ou de Aluisio Azevedo em seu “O Cortiço”, de 1890; e ainda de Machado de Assis, que em 1894, os descrevia vendendo peixes, com uma vara ao ombro e dois cestos pendentes.

Ao contrário do que aconteceu no resto do Brasil, nossos italianos eram majoritariamente urbanos, e talvez essa tenha sido a principal omissão por parte dos historiadores, da sua contribuição para a nossa gastronomia. Não ocuparam nossos campos, mas moldaram o gosto do carioca, até hoje, como ambulantes, comerciantes, donos de restaurantes, hotéis ou empresários.

Foram eles que criaram a “Piccola Calabria” na Baixada Fluminense e a “Calabria Carioca” no bairro de Santa Teresa, segundo Cléia Schiavo, ou ainda à Baixa Itália, onde hoje fica a Pacheco Leão, no Jardim Botânico, terra de muitos raviólis e “point” dos operários do complexo têxtil local.

Horacio Messeri foi um grande empresário de padarias e confeitarias, nos anos de 1820.

Nicola Zagari foi um dos maiores importadores de gêneros alimentícios da Itália, a casa “la piu antica ed importante in rio de Janeiro”, de 1884 a 1919, e também proprietário do Restaurant Marconi. Devemos a ele, talvez, o primeiro Amaro, e os inúmeros Chianti “em garrafas ou frascos”, Moscato, Fernet Branca, Barbera, Marsala e Barolo que se seguiram. Perguntei, por curiosidade, ao seu bisneto, Duda Zagari, se era por isso que ele também importava vinhos e tinha restaurantes. Incrivelmente, ele não sabia, mas estava no DNA.

Francesco Leta, filho de um comerciante de azeites na Reggio Calabria, inaugurou sua primeira loja em Ipanema, nos anos 60, e deu início à rede de Supermercados Zona Sul, uma das mais icônicas da cidade.

E ainda falta levantar os últimos 100 anos, parte deles na minha memória.

Não dá para esquecer os bifes à milanesa da infância, o panetone no Natal, a profusão de pratos com tomates secos dos anos 80, ou as bruschettas que se seguiram. Carpaccios, ricotas, risotos e tiramisús vários, ainda estão entre nós. Mozzarela é o queijo mais produzido no Brasil e no Rio, não é diferente.

 

MEU HOJE

Agora está explicado eu buscar a “nossa” versão de Sardegna em São Cristóvão, na Casa de Silvio Podda, que veio parar no Rio por gostar de Bossa Nova, do alho roxo, do leitão da serra e da querida Gladys. Já eu, vou até lá porque adoro a massa com vôngole e bottarga, os peixes fresquíssimos, os queijos, sorvetes, vinhos sardos e tal…

Também faz sentido eu achar a cozinha do Grado, do chef Nello Garaventa, um abraço. Ele homenageia a família da Liguria (hoje morando no Friuli) com seus ossobuco ou agnolotti de javali, difíceis de largar. Aos fins de semana, meu corpo dá um jeito de viajar até lá.

Entendi a Ferro e Farinha se instalar no Rio. Só podia ser de um sujeito triplamente estrangeiro (americano, filho de uma chinesa e um japonês) como o Sei Shiroma, que veio justamente para fazer uma pizza “à moda de Nápoles”, das minhas preferidas na cidade.

Vai ver então é por isso que eu adoro os pães do Rafa Brito Pereira, da Slow Bakery, nosso Horacio Messeri contemporâneo, que gosta de farinha italiana e fermentação natural. Viajo ao passado com seu raviolo com ricota e gema de ovo, do seu novo Lazy.

Me desculpem o texto longo demais. Essa coluna queria ser um livro.

Um livro italiano que queria passear por Ipanema.

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Fonte:

Comer & Beber – VEJA RIO