As guitarras de Highway to Hell, o clássico pesado do AC/DC, irrompem nas alturas, a iluminação ensaia efeito estroboscópico e a equipe entra em cena pelas cortinas para servir aos 12 comensais, de forma simultânea, a primeira cumbuca contendo – peço aqui licença poética afinada com a experiência – um pequeno ecossistema de comer, receita que o chef não quis nomear. E a música se altera para notas de piano relaxantes, com as paredes da sala cobertas de flores nas projeções de alta tecnologia tramadas pelo artista Batman Zavareze (responsável por visuais que vão da turnê de Marisa Monte ao encerramento da Olimpíadas de 2016).
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O sonho de Claude Troisgros é antigo: misturar gastronomia, música e artes em geral para envolver e atiçar todo os sentidos à mesa. O encontro com Batman definiu os caminhos estéticos da Mesa do Lado, um jantar nascido nos afetos e memórias de um dos chefs mais emotivos do Brasil: “Chorei diversas vezes no processo, e ainda choro“, revelou Claude, em bate-papo antes de o público ser chamado a acessar, por dentro do salão e da cozinha do restaurante Chez Claude, a pequena sala em formato de caixa onde ocorre a viagem com os pratos sendo feitos ao vivo pela chef Jessica Trindade e a afinadíssima equipe da casa.
Porque tudo é cronometrado, com direito a operador de som e luz nos bastidores do jantar regido por músicas, imagens, poemas e colheres, posto que o garfo surge apenas uma vez nas nove etapas do menu degustação, o que diz muito sobre as intenções de aconchego na busca das referências pessoais de cada um.
A começar pelo prato citado que abre os caminhos da noite, talvez o melhor entre todos em sua profusão de ingredientes de sabores marcantes e inúmeras texturas, num improvável e perfeito equilíbrio em cada descoberta. A mescla de purê de abacate, geleia de tomate e mel, couve flor crua, caviar de mostarda, picles de tomate, queijo cuesta azul, ostra, salicórnia e queijo de cabra frescal confirma, nas dissonâncias, que a comida é, de fato, o eixo que faz toda a mise-en-scène valer a pena.
Um provocação aos paladares que lembra a falsa desafinação de João Gilberto, e este não demora a comparecer com sua voz em Que reste-t-il de nos amours?. Enquanto as pessoas, pratos, taças e paredes permanecem cobertos de estrelas e grafismos de cores diversas, projetados e movendo-se lentamente, a playlist impecável feita pelos músicos Max Viana e Línox conduz a viagem de pouco mais de duas horas de duração a bordo de canções como Sodade, com Cesária Évora; Lero Lero, de Edu Lobo e Cacaso; Gal cantando o Vatapá de Dorival Caymmi; Marisa Monte e a Lenda das Sereias; e o Aqui e “Agorra” de Gilberto Gil (sim, Claude recita parte da letra).
Receitas, fotografias e frases se revezam nas paredes, enquanto os pratos descem harmonizados “às cegas”, com taças de vinhos que serão revelados apenas no final – exemplares nacionais como o chardonnay da vinícola Uvva, da Chapada Diamantina, e o belíssimo cabernet sauvignon Rota 324, da gaúcha Don Abel, da safra 2012. Claude aparece algumas vezes nas projeções de alta definição em fundo preto, falando, como se estivesse presente, sobre passagens de sua vida. E há grandes homenagens sentidas no paladar.
Os nhoques da receita de sua avó italiana, Ana Forte, personagem que aparece em slides, vêm pequeninos com vieiras, barriga suína em tiras finas e cubinhos de palmito, no caldo com dashi e tucupi. É o momento em que a voz animada do chef canta ao fundo, em francês, a música “nhoque da vovó“, criada por seu pai e transmitida para filhos e netos. A figura paterna, por sua vez, merece deliciosa reverência através de um preparo histórico.
Sim, Claude apresenta, sem concessões, o salmão com azedinha que rompeu tradições pesadas da culinária francesa no calor da chamada Nouvelle Cuisine dos anos 1960/70, da qual Pierre Troisgros, o pai, e Jean, o tio, foram personagens fundamentais. Além de mal passado, o peixe apareceu na época em fino filé, num ambiente de alta gastronomia onde os pescados vinham inteiros e eram trinchados na mesa. E o que dizer do molho intenso, perfumado e de acidez pronunciada, que serve de cama para o peixe, em camada leve no fundo do prato?
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Sobre ele, diz o texto projetado no jantar: “O molho é de grande elegância: reduzir chardonnay, Noilly Prat e fumê de peixe. Adicionar o creme de leite e as folhas de azedinha rasgadas“. A colherada que traz todos os elementos é quase viciante, e o recorte temporal desta etapa leva a sala fechada a algum lugar em meados dos século passado, quando um importante jornalista do Le Monde cravou no título: “Finalmente um salmão inteligente“. Diga-se de passagem, a terceira estrela da Maison Troisgros no Guia Michelin, conquistada na época, está mantida até hoje na cidade francesa de Roanne.
Além de um poema que fala de amor, café e joelhos que se procuram sob a mesa, recitado por Camila Pitanga em cores vivas ao final, é dos melhores momentos a aparição projetada de Roberta Sá, com o violão de Samara Líbano, cantando o delicioso samba Cabrochinha, de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro, sobre um rapaz que ganha na loteria e a convida para um restaurante francês: “Mas ‘sivuplé, ô, ‘messiê’ garçon / leva o menu que eu não entendo lhufas / eu vou pedir esse Dom Pérignon/ um escargot e um filé com trufas“.
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Destacam se ainda na noite um pequeno canelone de cavaquinha com lulas, vôngoles e dendê, e o steak de wagyu com aligot de mandioca, picles de batata doce, quiabo defumado e calda de blueberry. Se Pierre Troisgros reduziu com caldo de peixe e creme de leite o molho de seu salmão famoso, Claude resume neste último serviço – antes do mil folhas de chocolate, maracujá e folha de ouro – sua aventura brasileira, fervendo lentamente o vinho tinto e caldo de mocotó. Marravilhoso.
O jantar experiência custa R$ 1.420 por pessoa e as reservas são feitas pelo site mesadolado.com.br.
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