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Como o mundo dos vinhos está reagindo à campanha do álcool zero

Nos últimos anos, uma série de especialistas passaram a fazer insistentes alertas para derrubar a ideia de que o consumo moderado de álcool pode ser tolerado. Segundo eles, uma simples dose ocasional já implica em riscos, que podem desencadear problemas graves, como o desenvolvimento de tumores. A campanha pró-abstinência ganhou impulso de vez com a divulgação em 2023 de um relatório da Organização Mundial de Saúde. Intitulado “Reportando sobre Álcool: Um Guia para Jornalistas”, o material serviu de base para uma série de manchetes alardeando que “nenhum nível de consumo de álcool é seguro”.

Não é pouca gente hoje que faz projeções apostando que as bebidas vão ser cada vez patrulhadas e alvos de legislações duras, como ocorreu com o cigarro. Um dos alvos do momento, o mercado de vinhos resolveu reagir e enfrentar essa polêmica com ajuda da ciência. Quem está à frente da batalha é a médica e viticultora Laura Catena, que é da quarta geração da família Catena Zapata, da Argentina. Laura estudou medicina em Stanford (formou-se na turma de 1992) e exerceu a atividade na emergência em hospitais californianos por 27 anos. Nesse período, aliás, relata ter atendido inúmeros pacientes vítimas de acidentes causados por consumo exagerado de álcool.

Laura admite os problemas gerado pelo consumo da bebida, mas também diz combater a simplificação que transforma uma taça de vinho em uma sentença de morte. Ela é uma das principais articulistas do site “In Defense of Wine”(em defesa do vinho), onde estão publicados uma série de artigos e análises de dados. Em um mundo dicotômico, em que há apenas preto ou branco, Laura faz questão de dizer que “é tão cientificamente equivocado dizer que o vinho garante longevidade, quanto dizer que uma taça mata”. E cita as palavras do cardiologista da Universidade da California, Gregory Marcus, para ressaltar que “as evidências atuais sobre saúde e danos são bastante equivalentes”.]

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Laura Catena: defesa do consumo de vinhos com base em pesquisas científicasReprodução/VEJA

Um dos alvos de suas críticas é justamente o famoso relatório da OMS de 2023. Segundo Laura, o trabalho omitiu dados importantes, como os resultados de décadas de pesquisas em periódicos renomados que demonstram efeitos protetores cardiovasculares em bebedores moderados. Ela chama atenção também para um anexo com informações consistentes favoráveis ao consumo moderado, retirado do relatório antes da apresentação dele aos jornalistas naquela ocasião. “Se fizermos uma comparação, seria como analisar estatísticas de mortalidade por excesso de velocidade e direção agressiva e chegar à conclusão de que o carro mata, mesmo quem dirige com responsabilidade”, defende. Ela ainda estranha que, entre os colaboradores do documento da OMS, consta o nome de uma integrante da Movendi Internacional, organização que tem a seguinte proposta: “unimos, fortalecemos e capacitamos a sociedade civil para enfrentar o álcool como um sério obstáculo ao desenvolvimento em níveis pessoal, comunitário, social e global”.

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O relatório da OMS também passou a assombrar as mulheres na perimenopausa e menopausa. Em alguns perfis no Instagram, influencers passaram a bradar que uma taça era o suficiente para aumentar as chances de câncer. Laura pondera: “No caso do câncer de mama, mesmo com uma unidade de álcool por dia, há um aumento potencial de um ponto percentual no risco, possivelmente relacionado a uma maior produção de estrogênio resultante do álcool. Isso aumentaria o risco de câncer de mama ao longo da vida de 12% para 13,2%. Para uma mulher de 60 anos, cujas chances de morrer de causas cardiovasculares são aproximadamente 10 vezes maiores que as de morrer de câncer de mama, o equilíbrio dos efeitos na saúde leva a maioria dos médicos a não recomendar a abstinência completa”.

Outro ponto de discussão envolve a relação entre álcool e doenças neurológicas. Para refutar possíveis riscos, Laura cita dados de uma publicação científica de referência, o Journal of Prevention of Alzheimer’s Disease. De acordo com esse periódico, o consumo regular moderado de álcool está associado a uma melhor função global de memória executiva e visual entre idosos. Estudos com pacientes sofrendo de artrite reumatoide também relataram potenciais benefícios do consumo de leve a moderado de álcool. Quando se trata de estresse, um estudo de 2023 de Harvard descobriu que bebedores leves ou moderados de álcool tiveram uma redução acentuada na atividade da amígdala — o centro do estresse de luta ou fuga do cérebro — e os efeitos cardioprotetores associados foram ainda mais pronunciados naqueles com diagnóstico de ansiedade.

Apesar de citar essas pesquisas favoráveis ao consumo, Laura enfatiza que isso não tira a responsabilidade do mercado de contribuir para a reduzir os danos que o álcool pode causar em doses elevadas: “Precisamos nos acostumar a não servir pessoas embriagadas, a servir água em abundância — como meu pai me ensinou, um copo d’água para cada taça de vinho — e a sempre ter cuspideiras individuais disponíveis, mesmo em restaurantes e degustações sofisticadas”. Ela também fala em acolher com respeito quem escolhe não beber, seja por qual motivo for, e sempre ter alternativas sem álcool — algo que o mercado de vinhos tem investido cada vez mais. “Acredito que a posição de ‘nenhum nível seguro’ se baseia em ciência inconclusiva e ideologia proibicionista”, afirma.

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O crítico no New York Times Eric Asimov, em seu artigo que inspirou Laura Catena a nomear o site em defesa do vinho, diz o seguinte: “Nunca bebi vinho porque imaginava que fosse saudável. Mas não tenho medo dele com moderação, assim como continuo a fazer outras coisas que não são isentas de riscos, como dirigir, voar, comer carne e treinar artes marciais”. Ambos, Laura e Asimov, ressaltam a importância do vinho na história das civilizações e sobre o seu caráter social, aspecto positivo que não deveria ser ignorado. Afinal, sabe-se hoje que isolamento pode adoecer tanto ou mais do que quem exagera nas taças.

Toda essa polêmica em torno do consumo do álcool mostra o quanto é fundamental seguir aprofundando as pesquisas sobre os riscos à saúde — e também os potenciais benefícios ao organismo quando se adota o hábito de doses moderadas. A boa informação é a melhor dose disponível para os amantes dos vinhos.

 

 

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Fonte:

Vinho – VEJA