Ópio, mescalina e, sim, cafeína. São as três substâncias psicoativas capazes de “nos envolver com a natureza de uma das maneiras mais profundas”, na viagem do professor norte-americano Michael Pollan, tema do livro Sob o Efeito de Plantas (Ed. Intrínseca, 2023). De minha parte, sempre fã das ideias do referido autor sobre a alimentação, gostaria de solicitar a Mr. Pollan, humildemente, a inclusão na trama da capsaicina. Vocês conhecem? É aquela que transforma em fogo no parquinho da boca certos vegetais do gênero capsicum, também conhecidos como pimentas.
Porque acredito piamente ter alcançado o nirvana no primeiro mergulho em prato de picância nível três, no menu de um restaurante asiático de inclinação vietnamita e cruel autenticidade, o belo Sudestada, em Buenos Aires. Lá se vão mais de 15 anos, mas a memória arde. Tratava-se de uma salada de papaia verde, exotismo tentador. Tão inocente como um dragão-de-komodo. Anotei a placa: som tam. O segredo está no molho, é aquele papo. Bebi como refresco uma garrafa de sauvignon blanc enterrada no gelo, enquanto gotas de suor desciam pela camisa e as mãos tremiam levemente. Dor ou prazer?
Passo a palavra ao chef tailandês Prin Polsuk, do Samrub Samrub Thai, de Bangkok: “Quando passa, vem uma sensação de felicidade. Como o sexo”, avalia, no episódio dedicado à pimenta da série Omnivore (Apple TV), apresentada pelo superchef René Redzepi, do dinamarquês Noma. O restaurante é o palco da cena final, um jantar onde cada convidado deve comer um fruto da Bhut Orange Copenhagen, com cerca de 1.000.000 pontos na escala Scoville, que mede a ardência das pimentas. Para se ter uma ideia, a dedo-de-moça tem algo como 50.000. Enquanto um naipe de violinos toca no salão, um misto de êxtase e desespero percorre as expressões entre olhos vermelhos, faces molhadas e soluços. René definiu, em recente entrevista: “Foram uns dez minutos de loucura, bate um pânico, você acha que nunca vai acabar. Mas todos estão no mesmo barco, e tivemos clientes da casa que disseram ter sido a noite favorita no Noma”.
No Brasil, seria um bom tema de série a história de Fábio Tuma, um ex-dependente químico que começou a plantar pimentas na clínica de reabilitação e hoje é o maior cultivador nacional de variedades como Scorpion e Carolina Reaper, no pódio das mais ardidas do mundo. São mais de 80 mil pés em Monte Alegre do Sul (SP). A Viciado em Pimentas, sua empresa, vende pela internet uma variedade surpreendente de comidas incendiárias. Diga-se de passagem, ele tem clientes como as forças armadas, atrás de insumos para a produção do famoso gás irritante.
Mas como anda a picância nas mesas cariocas? Na cidade de muitos orientais para poucos baianos, os cardápios são mais manga do que malagueta, porque é preciso vender. Por mais fiéis que sejam às receitas, restaurantes tailandeses como o Nam Thai, em Ipanema, e o Càm O’n Thai Food, em Botafogo, precisam trocar o Buda de Esmeralda pelo Cristo Redentor na hora de temperar. A chef Ana Carolina Garcia, do Càm O’n, calculou: “Eu diria que reduzimos uns 30% a pimenta em relação ao que se come na Tailândia”. Na casa com jardim onde ela recebe, o curry vermelho é o prato mais picante, nas versões de pato com lichia, ou porco e abacaxi. O molho é feito do zero e, portanto, regulável: quem quiser padecer deve deixar isso claro à equipe.
Morde daqui, morde dali, foi na Zona Oeste que achei meu campeão. Um tanto escondido em centro empresarial na Avenidas das Américas, lá pelas tantas da Barra, e anunciado sem alarde no cardápio do Ryu: seafood noodle. Há cinco pimentinhas desenhadas ao lado. Um caldo vermelho que recebe a massa com camarão, lula, shitake, cenoura e cebolinha. A Coreia não decepciona. Um cozinheiro da casa me disse: é só gochugaru. A pimenta em pó coreana. Sei não. Tem mais lenha nessa fogueira. Sequei a tigela sem pressa, respirando fundo enquanto assistia a um insólito misto de jogo feminino de futebol e programa de auditório em canal coreano da TV. Recomenda-se prudência, porque a pedida passa sem dificuldades no teste do arrependimento, um parâmetro seguro para avaliar a qualidade da maldita.
Depois, porém, bate a saudade daquele estado defindo pelo psicólogo e professor norte-americano Paul Rozin como “masoquismo benigno”: a mesma atração pelo desconforto que nos faz andar na montanha-russa e ver filmes de terror, por exemplo. No frigir dos ovos, é como diz o psicólogo canadense Paul Bloom, professor de Yale e estudioso dos desejos: “Filósofos sempre tentaram definir características dos humanos: linguagem, racionalidade, cultura e tudo mais. Eu resumiria da seguinte forma: o homem é o único animal que gosta de molho Tabasco”.
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