Na produção do vinho, a qualidade final da bebida é ditada por aquilo que os especialistas chamam de terroir, em francês, a combinação entre clima, solo adequado, uvas e as técnicas empregadas para que se aproveite o melhor de cada região. Não basta, contudo, para que um rótulo cresça e apareça, apenas a magia do cultivo em condições ideais — o universo da bebida está sempre atento às boas práticas agrícolas. O mercado pune o descuido. É natural que as discussões sobre sustentabilidade que permeiam a agricultura de hoje desembarcassem também nos vinhedos. É movimento bom e crescente, que garante a longevidade das plantações viníferas em cenário de mudanças climáticas e garante ao consumidor um produto final celebrado pelo sabor, sim, mas também pela história que carrega.
Bem-vindo, portanto, ao mundo dos vinhos orgânicos. A Europa, continente de enorme tradição, está à frente desse processo. Os dados mais relevantes, compilados em 2019 pela OIV (Organização Internacional da Vinha e do Vinho), apontam que a maior parte dos vinhedos de zelo especial com o chão, digamos assim, estão lá, principalmente na França, Espanha e Itália, com expansão de 13% ao ano, em média. Em Portugal, o melhor exemplo vem do Esporão, do Alentejo. O grupo, que controla também as marcas Quinta dos Murças, no Douro, e Quinta do Ameal, da região dos Vinhos Verdes, ao norte, lida organicamente com algo em torno de 650 hectares, porção de terra equivalente a 650 campos de futebol. Há ainda outros 111 hectares de olivais orgânicos. “No início, a decisão de migrar para a agricultura orgânica foi baseada na qualidade dos vinhos, e não em mudanças climáticas”, diz João Roquette, CEO do grupo. O empresário diz ter decidido a virada de modelo depois de provar, lado a lado, às cegas, taças vindas de terra e plantas tratadas com químicos e taças de produção isenta de defensivos agrícolas. As “puras” eram superiores.
Para a opinião pública, no entanto, a percepção era oposta. Vinhos orgânicos eram tidos como piores. “Decidimos, então, não divulgar que os vinhedos eram orgânicos”, diz Roquette. Logo, a situação mudou. Hoje, o Esporão é responsável por 18% de toda a produção orgânica certificada no país e tem diversos rótulos premiados. No processo de migração para a agricultura orgânica, há quase vinte anos, foi preciso buscar inspiração em algumas das poucas vinícolas do mundo que andavam à frente. A mais celebrada e responsável era a chilena Emiliana. Dona do maior vinhedo orgânico do planeta, com mais de 900 hectares, a empresa hoje abre suas portas para que outros produtores, de todo o mundo, possam aprender as técnicas necessárias. “Adotar a agricultura regenerativa sustentável, orgânica e biodinâmica, produzindo vinhos de alta qualidade, além de respeitar nossos trabalhadores, e ao mesmo tempo gerar lucros, é a forma de demonstrar que é possível seguir o caminho da produção agrícola biológica em grande escala na indústria do vinho”, afirma Alejandro Smith, diretor de vendas da Emiliana.
A preocupação ambiental começa a ganhar força no Brasil, embora ainda de forma tímida. O melhor exemplo vem da Chandon. A marca do conglomerado de luxo LVMH produz espumantes premiados no sul do país e desde o fim do ano passado ostenta a certificação sustentável PIUP (Produção Integrada de Uva para Processamento) em seu vinhedo de Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul. O selo de qualidade obriga a regras rígidas para o uso de herbicidas e outros químicos. Não são vinhos orgânicos, a rigor, mas produzidos de modo menos agressivo com a natureza.
É ótimo caminho. Os produtores garantem — e enólogos confirmam — que o paladar é preservado. E mais: a agricultura sustentável pode enriquecer a percepção da fruta na hora da degustação. É um agradável incentivo, de mãos dadas com os humores da sociedade, hoje. A preservação do solo e a redução do uso de pesticidas são compulsórias — ainda que os preços, na ponta final, sejam mais elevados. “Quando começamos, disseram que era impossível. E agora, cá estamos”, diz Roquette, da Esporão. Um brinde aos vinhos bons e do bem.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847
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